segunda-feira, 30 de novembro de 2009

O Deserto do Pó

Atacama, o deserto do pó




No deserto de Atacama, o mais árido do planeta, há séculos que não cai uma gota de água. Só há rochas, pedras, cactos, pó... E uma estranha beleza, que inexplicavelmente se entranha.

Para trás, a Argentina e o sul do Chile. Para a frente, Monsieur de la Palisse e o norte, depois o Peru, o Equador, a Colômbia, o Panamá, a Costa Rica, a Nicarágua, as Honduras, El Salvador, a Guatemala, o México, os Estados Unidos da América e o Canadá, ponto final no Alasca. Neste preciso ponto, próximo da cidade de Vallenar, III Região do Chile, uns 140 quilómetros a sul de Copiápo - a maior das três províncias da região de Atacama -, 660 quilómetros a norte de Santiago, capital chilena, debaixo de um sol tórrido, por cima do Trópico de Capricórnio, não havia maneira de o carro pegar. Não era um carro qualquer. Era um Ford, modelo Falcon, distinto exemplar da indústria de Detroit, casta de 82, ainda assim com menos anos que os seus três mil de cilindrada, motor musculado, estrutura em V, engolidor de óleo e de água, um puro-sangue, transfusionado para nos servir, se a ignição ajudasse. Só assim seria possível retomar o norte na imensa auto-estrada Pan-Americana, em direcção à boca enorme do deserto de Atacama, mortinho para nos engolir de um fôlego junto com a lata velha, que desatou a cuspir fumo pelas traseiras, dispensando a vigésima ida ao mecânico, mais coisa, menos coisa.



É preciso ter cuidado, muito respeito, quando se está prestes a enfrentar um monstro de rara beleza como este deserto, como um animal indomável, que é a sua própria lei, cuja imensidão é maior do que parece. Do tempo, não havia que esperar grande coisa, a não ser os aspectos científicos da sua previsibilidade: quase de certeza que não ia chover.

No deserto de Atacama não chove há mais de 400 anos, mas já houve períodos de mais de mil anos em que não caiu uma gota de água. Informação preciosa, inversamente proporcional às litradas engarrafadas, a aquecer no banco de trás. A viatura não dispunha de ar condicionado, airbags ou direcção assistida, pedaços foram caindo desde a cidade de Buenos Aires, pneus morreram na travessia da Patagónia, que em dureza não é comparável ao Atacama, floresciam fios eléctricos por todos os recantos do tablier, quase tudo o que era para funcionar não funcionava, mas tinha junto ao rádio avariado, presa por um íman, a Virgem da Guadalupe, santinha em traje alvo e celeste, cores da grande nação argentina e a mensagem tranquilizadora: "Buena Viaje!"

Sempre seco
O deserto de Atacama é o mais árido e o mais alto do planeta, já que fica a uma média de mil metros acima da linha de água. É evidente que uma coisa está ligada à outra. O fenómeno climático global, que na sua latitude cria desertos nas costas ocidentais em todos os continentes do hemisfério sul, faz a sua parte neste enorme pedaço do Chile. Os anticiclones do Pacífico, os grandes sistemas estáveis de alta pressão continuavam a criar os ventos alísios, mas nunca causando índices pluviométricos no deserto de Atacama, a salvo destes pela sua altitude, que por isso impede a sua passagem. A corrente de Humboldt, que transporta uma maré imparável de águas frias da Antárctida a norte e ao longo da costa chilena, que torna gélidas as brisas marítimas do oeste, continuava a reduzir a evaporação, a estimular o fenómeno de inversão térmica, a impedir a formação de nuvens altas e, por sua vez, de chuva. E, já agora, também não convém esquecer o gigante, a imensa cordilheira dos Andes, que forma uma planície vulcânica, altíssima e em forma de concha - a famigerada região altiplana andina -, que impede a passagem das tempestades de humidade que derivam da Amazónia brasileira. Sendo assim, também era melhor levar umas bolachas, pois a parte inicial era precisamente através das regiões onde durante mais tempo se registaram os mais longos períodos sem água, o que pode gerar fome. O primeiro objectivo era passar a cidade de Copiápo, onde estava a única estação de serviço num raio de 150 quilómetros, com sorte chegar à II Região, Antofagasta. Com mesmo muita sorte, chegar a Calama, a escassos quilómetros de San Pedro de Atacama, o oásis de Atacama.


Sem mais, a cidade de Vallenar, um depósito de solidão, mochileros de passagem e mineiros desempregados, ficou para trás, sorvendo lentamente o depósito que antes de sair atestámos, o que é de vital importância. Aliás, qualquer nativo aconselhará a atestar o depósito sempre que pelo caminho se verifique que não é miragem uma estação de abastecimento de 'nafta', que é como encontrar ouro onde não existe filão. Transposta com grande confiança a primeira parte do trajecto, por entre montes e vales, passando primeiro por uma região costeira onde a vista se perde no Pacífico, a uma velocidade média de 60, 70 quilómetros/hora, fomos encontrando o âmago, rocha, pedra, cactos de westerns gastos pelo tempo, pó, esqueletos de automóveis no meio do nada absoluto e magnífico, onde não havia um vestígio de vida que não fosse víbora ou presa. O ar é sequíssimo, parecia que o deserto se esticava à nossa frente, hipnotizando, lançando o seu feitiço, colando os lábios, apertando a garganta, dificultando a respiração.

Até à próxima estação, só havia recta, sob um sol intenso. A temperatura durante o dia excede os 40 graus. Durante a noite, é negativa. É importante não parar. Só a estrada parecia serpentear nas cores do sol na areia, nos múltiplos reflexos na rocha, no castanho da aridez, nas ilusões que criava, enquanto se acumulava o cansaço, distraído por altares ocasionais, muito comuns na América do Sul, quase esculpidos na rocha, que cada vez mais apertava o cerco à estrada. Muito de vez em quando, um camião cruzava-se connosco ou éramos ultrapassados por carrinhas de caixa aberta, tracção 4x4, a velocidade estonteante.

Em marcha lenta
Quilómetros e quilómetros passaram muito mais lentamente. Impossível dizer quantos, pois o conta ditos também estava avariado. Até chegar às imediações de Copiápo, que parece uma cidade fantasma, à paisana no deserto, cercada por furacões de alta e baixa intensidade que ao longe se viam a dançar em seu redor. E onde havia uma estação de serviço. Depósito cheio, dez litros de água fresca, que em meia hora ficava à temperatura ambiente, numa hora em chá, e umas daquelas sandocas universais das estações de serviço que se colam ao céu da boca, pois não havia mais nada que isso para além do tradicional choripan (chouriço em pão de cachorro), que é de enjoo fulminante. Daqui em diante, disse o gasolineiro, era rezar, parar de vez em quando para regar o motor e nem pensar em passar a noite no carro, muchachos.


Percebemos porquê mal nos fizemos de novo à estrada, atirados para um tumulto gigantesco de pó, desaparecendo Copiápo no retrovisor, desaparecendo a estrada por completo no horizonte, obrigando-nos a fechar as janelas do nosso forno ambulante, que ainda assim resistia, em marcha lenta para o epicentro de qualquer coisa ainda pior. O deserto de Atacama não gosta de nós. Não é para ser atravessado. E, decididamente, não é sítio para se ter uma avaria. E não é para acelerar mesmo que se tenha pressa de chegar ou, simplesmente, de sair dali. "Passito, passito, muchachos!" Devagar.

Devagar, nunca chegaríamos a Antofagasta, a maior cidade da região atacamanha. Depressa chegou o pôr-do-sol, o que não eram boas notícias para quem tinha as luzes do carro avariadas. Por outro lado, não havia vivalma, a coisa de 100 quilómetros de Antofagasta, a meio caminho e muito deserto de Calama, que era o objectivo do dia seguinte.

Ainda bem que sacudimos o pó do mapa, descobrindo um ponto minúsculo naquela geografia, a pouco mais de 40 quilómetros, virando em direcção à costa: Taltal outrora era um enclave boliviano, actualmente é um povoado de férias para muitos brasileiros, que adoram as praias um pouco mais afastadas de Pan de Azucar. Taltal era uma cidade tal que mal podíamos esperar para sair de lá, o que fizemos à primeira luz do dia, já que do carro não era expectável. Partimos em direcção a Calama, apenas passando ao largo de Antofagasta, na mais dura etapa deste deserto. Nas imediações de Antofagasta, visto de longe, ganha forma uma 'alucinação": a Mano del Desierto, um dos últimos legados do ditador Augusto Pinochet. Uma mão gigante que se ergue no nada, como se estivesse a impedir o céu de cair. É território inóspito, duro, petrificado, que parece sem fim, que parece o fim do fim, de novo sob um sol inclemente.


A cidade de Calama, a mais de dois mil metros de altitude, é como avistar o paraíso. Sendo chilena, é na verdade uma cidade de bolivianos. E o cansaço, pela viagem e pela altitude, é indescritível. É preciso um esforço titânico para procurar um sítio para dormir, embora o alojamento seja abundante, nem todos à prova de engano.
E, no dia seguinte, se a santinha e o motor quisessem, dormiríamos em San Pedro de Atacama, a jóia do deserto. Cansados chegámos, cansados abandonámos Calama, uma daquelas cidades em que só os poucos que estão não estão de passagem. Se o carro andasse, sempre uma incógnita matinal, o verdadeiro teste seria aos travões, que, em harmonia com o resto do carro, não andavam grande coisa. Através da região montanhosa, a descida para San Pedro de Atacama é de troços longos e íngremes, curvas e contracurvas perigosíssimas, ganchos à esquerda e à direita, cada qual com o seu penhasco, alternando com extensas planícies de sal, que espelham o céu, unindo-se com ele ao longe. Não sei se foi a santa, mas foi um milagre chegarmos a San Pedro de Atacama, já próximo das confluências da Bolívia e do extremo norte da Argentina. E logo para conhecer o mecânico local, que se mexia como se estivesse em Calama e que também já começava a acreditar no poder da Virgem de Guadalupe.
 "De Buenos Aires? Han venido con este coche, carajo?"
 Não digam mais: "Gringos!"


Mal sabia o senhor oleado que o carro precisava de uma vela para o motor e que não havia uma vela como aquela em todo o San Pedro de Atacama. É mais fácil encontrar ali uma rosa.

(Texto publicado na Revista Única da edição do Expresso de 28 de Novembro de 2009)
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Créditos: Jornal Expresso Online

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