quarta-feira, 10 de março de 2010

O que faz você feliz?

Há muito tempo, o conceito de felicidade perdeu aquele traço de perenidade que os muito românticos ou ingênuos lhe emprestavam. O “foram felizes para sempre” sumiu de todas as histórias que vieram depois de Branca de Neve e Cinderela. Isso, quando se fala de felicidade a dois, ou seja, harmonia, bom entendimento mútuo, respeito e amizade que coexistam com o amor.


Mas ninguém é obrigado a ser feliz a dois. Esse estado ou sensação de plenitude exige mais que apenas a presença de um parceiro. E a despeito das opiniões em contrário, é bem possível ser feliz, genuinamente feliz, vivendo sozinho. Conheço alguns exemplos de pessoas assim.

Analisando a vida e o comportamento desses seres bem-aventurados, cheguei à conclusão de que a primeira condição para ser feliz, sozinho ou acompanhado, é estar bem consigo mesmo. Um bom parceiro pode ajudar, mas não pode ser responsabilizado pela infelicidade do outro, se esse outro viver moído de frustração, mágoa ou inveja. Alguém incapaz de se identificar com um semelhante, de rir ou sofrer junto. Prazeres mesquinhos que deixam um rastro de destruição, drogadição, egoísmo mórbido, egocentrismo irrestrito e seus derivados são inimigos do estado de felicidade. Isso nem é novidade, é quase intuitivo. Mas então, que droga é isso de felicidade?

Há uma propaganda na mídia que começa perguntando “o que faz você feliz?”, para em seguida mostrar o estoque variadíssimo de alguma loja – ou será uma marca de carro? Não importa muito o produto veiculado, mas o espírito da coisa. Confunde-se constantemente a alegria causada por uma boa compra ou por um novo namorado com felicidade. Isso é euforia, satisfação, estado passageiro muito agradável e que se confunde facilmente com felicidade. Passa rápido, e os motivos de tristeza ou ansiedade ficam mais fortes, quando se percebe que nem a estabilidade financeira nem a nova paixão preencheram aquele vazio sabotador do bem-estar.

Uma das pessoas que considero felizes me diz que atribui sua paz interior a vários fatores, um dos quais seria a realização profissional. Imagino que sentir-se satisfeito com o que se faz é meio caminho andado. Ou um terço de caminho, vá lá. Quando se tem a sorte de acertar nessa confusa loteria que é o mercado de trabalho, talvez se esteja conseguindo mesmo uma garantia relativa para viver em paz, e nem falo de altos rendimentos ou posição de destaque. Essa amiga, uma modesta costureira e artesã, vive numa cidade pequena da Bahia e mora numa casa simples de vila, onde cultiva algumas das plantas mais bem cuidadas que já vi. A alegria de ver sair das próprias mãos um objeto ou uma roupa que atrai clientes e merece elogios é um motivo de alegria quase permanente, além de garantir a subsistência dela e do filho de dez anos, que perdeu o pai há três. “Não posso dizer que não sinto falta do Daltro”, ela diz, “mas apesar de chorar muitas vezes com saudade dele, eu me sinto muito feliz com nossa vida”. Será boa consciência? Será o sentimento de ser uma boa mãe? Não sei, mas Dalva – o nome dela é Dalva – é uma mulher inequivocamente feliz.

Outro, um conhecido daqui do Rio, um homem meio calado mas muito bem-humorado, é autor de alguns dos textos mais inovadores e gostosos de ler que conheço. Aposentado há um ano, acha que o que ele e a mulher recebem é suficiente para curtir a vida do jeito deles, sem grandes luxos. Resolveu se dedicar ao que gosta mesmo de fazer, que é escrever e pintar – e são dois pintores, porque Gisela, a mulher, também tem bons trabalhos de pintura e ilustrou um bonito livro artesanal para dar de presente ao marido escritor no Natal. Esse escritor anônimo tem contos, muitos, dois romances, roteiros de novelas e um roteiro de filme. Tentou publicar em editoras “de autor”, mas se desiludiu com o mercenarismo e o descaso delas pelo autor. Está preparando um blog, que talvez vá se chamar Memórias de Agora, onde pretende mostrar seu trabalho. Tem dois filhos que já não moram com ele e a mulher, e seus dias, que tinham tudo para cair numa rotina desesperadora, são preenchidos por pesquisas, exercícios de culinária, bons filmes e longas conversas com os amigos com quem gostam de sair ou convidar para sua casa.

“Não preciso mais correr atrás de nada”, ele me disse, quando perguntei por que não vai mais à luta para publicar seus escritos. “Quero aproveitar os anos que ainda tivermos de vida para viver a fundo nossa felicidade. E acho que não seria justo comigo e com Gisela continuar ralando pra conseguir mais uns trocados”. Gisela não disse nada, mas teve um gesto de carinho explícito, e os dois se abraçaram com a cara iluminada de quem está em paz com a vida – e consigo mesmo.

Há outros casos, gente com a vida limitada por doenças ou perdas que deixariam em desespero quem não tivesse essa âncora interna, difícil de explicar e de entender, que no entanto faz de gente aparentemente “perdedora”, como alguns gostam de dizer, vencedores da guerra mais difícil de ganhar, e que se trava dentro de cada um.
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Créditos: Bolg "o bem, o mal e a coluna do meio"

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