quarta-feira, 25 de julho de 2012

cole tura a+

"É a falta de cultura, estúpido!

Portugal tem hoje uma pequeníssima elite que consome cultura, quase toda velha e sem sucessores.

Nós merecemos isto. Nós elegemos esta gente. Nós não somos muito diferentes disto. No meio do anedotário que converteria um homem mais inteligente num homem trágico, convém não esquecer o que nos separa, exatamente, do Relvas. Pouco. O dito não é um espécime isolado, um pob...re diabo animado de força e disposição para fazer negócios e trepar na vida, que entrou em associações e cambalachos, comprou um curso superior e, de um modo geral, se autoinstituiu em conselheiro do rei. Já vimos isto.

Nunca vimos isto nesta escala, porque na 25ª hora da tragédia nacional, quando Portugal se confronta com a humilhação da venda dos bens preciosos (os famosos ativos) aos colonizados de antanho e seus amigos chineses, o que o país tem para mostrar como elite é pouco. Nada distingue hoje a burguesia do proletariado. Consomem as mesmas revistas do coração, lêem a mesma má literatura (que passa por literatura), vêem a mesma televisão, comovem-se com as mesmas distrações. Uns são ricos, outros pobres.

A elite portuguesa nunca foi estelar, e entre a expulsão dos judeus e a perseguição aos jesuítas, dispersámos a inteligência e adotámos uma apatia interrompida por acasos históricos que geraram alguns estrangeirados ou exilados cultos permanentemente amargos e desesperados com a pátria (Eça, Sena) e alguns heróis isolados ou desconhecidos (Pessoa, 0'Neill).

Em "Memorial do Convento", Saramago dá-nos um retrato da estupidez dos reis mas exalta romanticamente o povo. Todos os artistas comunistas o fizeram, num tempo em que o partido comunista tinha uma elite intelectual e de resistência inspirada por um chefe que, aos 80 anos, quase cego, resolveu traduzir Shakespeare. Cunhal traduzindo o "Rei Lear" de um lado, Relvas posando nas fotografias ao lado da bandeira do outro. Relvas nem personagem de Lobo Antunes, o (descritor da tristeza pós-colonial, chega a ser. É um subproduto de telenovela O tempo dos chefes cultos acabou, e se serve de consolação, não acabou apenas em Portugal.

A cultura de massas ganhou. No mundo pop, multimédia, inculto e narcisista, em que cada estúpido é o busto de si mesmo, a burguesia e o lúmpen distinguem-se na capacidade de fazer dinheiro. Acumular capital. O dinheiro, as discussões em volta do dinheiro acentuadas pela falta de dinheiro, fizeram do proletariado (e desse híbrido chamado classe média) uma massa informe de consumidores que votam. E que consomem democracia, os direitos fundamentais, como consomem televisão, pela imagem. Sócrates e o Armani, Passos Coelho e a voz de festival da canção. Nós, e quando digo nós digo o jornalismo na sua decadência e euforia suicidaria, criámos estas criaturas. Os Relvas, os Seguros, os Passos Coelhos, os amigos deles.

O jornalismo, aterrorizado com a ideia de que a cultura é pesada e de que o mundo tem de ser leve, nivelou a inteligência e a memória pelo mais baixo denominador comum, na esteira das televisões generalistas. Nasceu o avatar da cultura de massas que dá pelo nome de light culfure em oposição à destrinça entre high e low. O artista trabalha para o 'mercado', tal como o jornalista, sujeito ao raring das audiências e dos comentários online.

A brigada iletrada, como lhe chama Martin Amis, venceu. Estão admirados? John Carlin, o sul-africano autor do livro que foi adaptado ao cinema por Clint Eastwood, "Invictus", conta que Nelson Mandela e os homens do ANC, na prisão, discutiam acaloradamente, apaixonadamente, Shakespeare. Foram "Júlio César" ou "Macbeth", "Hamlet" ou "Ricardo III" que os acompanharam. Não é um preciosismo. A literatura, o poder das palavras para descrever e incluir o mundo num sistema coerente de pensamento, é, como a filosofia e a história, tão importante como a física ou a álgebra. A grande mostra da Grã-Bretanha nos Jogos Olímpicos é Shakespeare (no British Museum) e não um dono de supermercados ou futebolista.

Os 'heróis' portugueses descrevem-nos. E descrevem a nossa ignorância Passos Coelho é fotografado à entrada do La Féria ou do casino. Um dono de supermercados ou um esperto ministro reformado são os reservatórios do pensamento nacional. Uma artista plástica é incensada não pela obra mas pela capacidade de "agradar ao mercado", transformando-se, pela manifesta ausência de candidatos, em artista oficial do regime. É assim.

Não teria de ser assim. Portugal tem hoje uma pequeníssima elite que consome cultura quase toda velha e sem sucessores. Não estamos sós. Por esse mundo fora, a arte tornou-se cópia e reprodução (daí a predominância dos grandes copiadores de coisas, os chineses), tornou-se matéria tornou-se consumo. Como bem disse Vargas Iiosa, em vez de discutirmos ideias discutimos comida. A gastronomia é uma nova filosofia. Ferran Adriá é o sucessor de Cervantes e de Ortega Y Gasset."

Crónica de Clara Ferreira Alves publicada na última edição do Expresso.

4 comentários:

Anónimo disse...

E afinal, o que vem a ser " cultura"?
O conhecimento das àreas dos grandes compositores e respectivas idas à opera de fraque ou vestido longo com estolas de peles raras e caras, a leitura de grandes autores de séculos passados e a acumulação de livros em estantes do chão ao tecto em bibliotecas cheias, reluzentes de encadernações douradas valiozissímas,o conhecimento e aquisição de quadros de valor astronómico com o único objetivo de os esparramar nas paredes de salões onde outros cultos e cultas bebem vinhos cujo preço por garrafa daria para alimentar uma familia durante uma semana?
Pois...pode ser.
Mas para mim, pessoa inculta, cultura é um acumular de conhecimentos sobre " tudo " o que nos rodeia, presente e passado, perto e longe.
Euzinha, pessoa inculta,nunca conheci ninguem tão culto como o meu saudoso amigo Gastão Simão,negro, neto de escravos como fazia questão de referir, mas com quem "qualquer" culto ou inculto podia falar de todo e qualquer assunto.Ele sim, era realmente culto. Nunca tinha ido a um concerto de musica classica mas emocionava-se até às lagrimas com a audição de um simples vinil da referida musica.
Não tinha um Picasso mas sabia tudo da sua vida e da maioria de outros génios da pintura.
Livros tambem já não tinha. A guerra na sua querida Lourenço Marques obrigou-o a deixar para trás não só os seus livros como tantos outros tesouros, testemunhos das muitas viagens por esse mundo onde se "cultivou".
Euzinha, inculta, quando por acaso e alguma ousadia digo a algum "culto" que gosto de musica clássica, tenho milhares de livros todos lidos, gosto de pintura e de viajar, sou olhada com pena porque afinal cultura é só para ricos, de preferencia doutores, frequentadores de hoteis de 5 estrelas.
Mas euzinha, inculta, de parva não tenho nada e aproveito todas as oportunidades que me vão aparecendo para aprender mais e mais, na vã esperança de que, mesmo pobre e neta de analfabetos, consiga, quem sabe, chegar aos pés do Sr.Gastão.
Afinal, cultura é conhecimento.Que pode ser como fazer um queijo, a tradição dos caretos em Trás os Montes, uma sinfonia de Beethoven, ou o Lago dos Cisnes.
Haverá uma altura em que computadores, traquitanas chinesas e comida de plástico deixarão de ser o centro das nossas vidas. Nessa altura, usaremos todo o potencial que o computador e a internet terão na aquisição de cultura, teremos muita curiosidade em conhecer a riquissima e unica cultura chinesa, e saberemos todos, ou teremos vontade de saber, como se cria uma vaca, para que na nossa mesa possam aparecer os tais amburguers.
Noir du ciel...querendo...todos nós podemos ser cultos.E é isso que nos falta. Relvas e Passos incluídos.
Só um bocadinho assim.....

biNércio disse...

Culto é todo aquele que tem a capacidade de reconhecer a sua falta de cultura, balizada pela padrões da sociedade tradicional e auto intitulada de "culta". A cultura não é genes hereditário mas sim o conjunto de aprendizagens resultantes das vivências e curiosidades que todos os dias se cruzam no caminho do Homem. Mais culto do que perguntar para saber o que aconteceu, é saber fazer acontecer!!
Cumprimentos

biNércio disse...

..... e não basta ter acesso à cultura; é necessário querer, desejar e ter uma certa dose de humildade para se conseguir aprender!!! Só um génio podia ter dito "Só sei que nada sei"

Anónimo disse...

Exatamente!!!!!!!!!!!!!!!